terça-feira, 5 de junho de 2012

Marina Silva e o legado que virou moda.

Por Sérgio Vieira.


Se alguém achou que o discurso adotado na campanha presidencial de 2010, que atraiu quase 20 milhões de eleitores, cairia no esquecimento, enganou-se redondamente. Ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente no governo Lula, Marina Silva está cada vez mais em evidência. Uma das maiores lideranças mundiais no tema, tem sido voz importante na luta por um Código Florestal realmente eficiente. Ainda assim, adota humildade, ao dizer que esta briga deve ser de ‘qualquer um’. Empenhada em debater a política ambiental pelo Brasil inteiro, em espécie de caravanas, Marina diz que ainda não sabe se disputará novamente o Planalto em 2014. “Não quero ficar na cadeira cativa de candidata. Espero estar onde puder contribuir mais”. A mulher de voz mansa, com até aparência frágil, mas de uma força fenomenal recebeu a equipe da Dia-a-Dia em Brasília, onde mora, justamente no dia em que a presidente Dilma anunciou o veto parcial do polêmico código, o que, segundo Marina, é insuficiente.  Para ela, seus votos são um legado e não espólio. “O espólio pode ser apropriado por poucos, mas o legado por muitos”. 

DIA-A-DIA – Qual a sua análise do veto parcial do Código Florestal feito pela presidente Dilma?
MARINA SILVA – Para resolver o problema criado pela Câmara e pelo Senado, que reduz a proteção das florestas, anistia desmatadores e abre um precedente terrível de desconstrução de toda governança ambiental brasileira, só com o veto integral. Vetos periféricos não resolvem o problema. A presidente se comprometeu a vetar todo artigo que signifique aumento do desmatamento e anistia dos desmatadores. Isso significaria vetar todo o projeto. É importante que se tenha uma solução que leve a um projeto de lei da sociedade brasileira para salvar os interesses estratégicos da proteção e do uso sustentável das florestas, da agricultura que respeita o meio ambiente. A sociedade não quer essa lei. Mais de 80% não querem essa lei e o Congresso está em descompasso com a sociedade. Este é o pensamento de apenas de uma parte de um setor. Digo que é de uma parte porque o agronegócio não está integralmente favorável a essa posição. Existem entidades do setor que têm visão estratégica e não imediatista da questão. Dessa forma, a presidente estava duplamente respaldada para vetar o projeto, já que em 2010 ela antecipou que vetaria. Quem votou nela sabia que ela tinha feito esse compromisso. O veto, longe de ser atitude de desrespeito com o Congresso, é a chance de reabrir o debate. Hoje temos estudos que dizem que se tivermos continuidade do aumento da temperatura, das dez culturas que temos mais importantes do País, só duas não serão afetadas e mesmo assim teríamos de mudar o plantio da mandioca para o Rio Grande do Sul. Se destruírmos a Amazônia, o Sul, Sudeste e Centro-Oeste se transformarão em deserto e se isso acontecer é a maior lástima para a agricultura brasileira.  

DIA-A-DIA – Qual a razão para o fato de a maior parte do setor do agronegócio encarar a questão ambiental como inimiga? 
MARINA – Não sei. Sei  o porquê de o meio ambiente ser amigo do desenvolvimento. Não há como ter desenvolvimento sem suas bases naturais, sem os serviços ambientais que a natureza presta. É inadmissível produzir uma cabeça de gado por hectare, quando na Argentina se produz três cabeças de gado por hectare. É inadmissível produzir um emprego para cada 400 hectares, quando a Embrapa já tem tecnologia que nos permite produzir um emprego a cada 80 hectares. É inadmissível que tenhamos cerca de 150 milhões de hectares destinados a uma pecuária de baixa produtividade, quando se dobrarmos a nossa produção nós poderemos liberar cerca de 17 milhões de hectares para a produção agrícola. É isso que não dá para entender. Não sei porque eles acham que deva manter isso. Mas eu sei porque devemos mudar, porque o Brasil tem todas as condições de ser uma potência ambiental, agrícola, pelas decisões políticas e pelos investimentos certos em tecnologia e conhecimento para que se resolva questão estrutural da agricultura.  

DIA-A-DIA – Mandar para a presidente Dilma um projeto de lei deste tipo, com tamanha repercussão negativa, não foi um tiro no pé dos parlamentares?
MARINA – Houve negligência da base do governo, que deu um cheque em branco para que a bancada ruralista dirigisse o processo. Concentrou o projeto na mão do Aldo Rebelo (PCdoB, atual ministro do Esporte) na Câmara e Luiz Henrique (PMDB) no Senado. Não foi um cochilo. O governo é muito atento. Acho que foi a falta de compreensão estratégica de que o problema deveria ter sido resolvido à altura da responsabilidade que o Brasil tem.  

DIA-A-DIA – O surgimento da campanha Veta, Dilma! demonstra que valeu a pena o fato de a senhora ter colocado o assunto em pauta na eleição presidencial?
MARINA – Eu dizia, logo em seguida às eleições, quando as pessoas ficaram surpresas com o fato de termos conquistado quase 20 milhões de votos, que o meio ambiente e desenvolvimento sustentável são ideias cujo tempo chegou. E essas ideias só não prosperam quando não existem homens e mulheres comprometidos com esse tema. E o fato dessa mobilização estar em todos os setores da sociedade, transbordando as organizações socioambientais, é uma demonstração disso. Resta ao Congresso e ao Executivo se perfilar com sociedade para esta oportunidade. A presidente Dilma está recebendo um legado da sociedade brasileira, que está estendendo voluntariamente a mão para ela, dizendo que ela tem nosso apoio para liderar esse processo de mudança de modelo de desenvolvimento, de quebra de paradigma. E com a compreensão de que isso não é feito da noite para o dia, mas é preciso criar os passos. É preciso trabalhar para passar no teste e não mudar o teste. A mudança na legislação ambiental brasileira é uma atitude de mudar o teste em lugar de passar no teste. O retrocesso que estamos vendo ser patrocinado pela bancada ruralista é um dos piores desserviços pelos mais de 20 anos de progressivas conquistas na agenda socioambiental brasileira.  

DIA-A-DIA – A senhora foi ministra do Meio Ambiente durante cinco anos e meio no mandato do presidente Lula e saiu justamente por atritos com o setor agropecuário. Ficou alguma mágoa em relação ao presidente Lula?
MARINA – Mágoa, não tenho. Mas queria que tivesse prevalecido a tese de que meio ambiente seria uma agenda transversal no governo, mas foi prevalecendo a tese de que meio ambiente deveria ser apenas um setor isolado, para correr atrás do prejuízo. Achava que deveria ter um esforço antecipatório, de que no planejamento dos diferentes setores as preocupações e as variáveis ambientais já estivessem contempladas. E quando o presidente Lula chamou o ministro Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos) para ser a pessoa que iria liderar essa agenda no seu governo, começou um festival de retrocessos e a única maneira de continuar ajudando o Brasil, a Amazônia e o próprio presidente Lula era pedindo para sair. Porque se eu não tivesse saído eles teriam revogado o Plano de Combate ao Desmatamento. E a minha saída fez com que a população se mobilizasse e desse sustentação política para que o presidente mantivesse o plano que nós tínhamos começado a implementar. A saída não foi por mágoa e sim um gesto de colaboração e de compromisso com a agenda. Foi lealdade. Não são leais apenas aqueles que dizem sim. São leais aqueles que têm a coragem de dizer não e pagar o preço por isso. Os verdadeiros amigos nem sempre são aqueles que estão o tempo todo batendo palma. São aqueles que têm a coragem de ajudar a corrigir os rumos. Eu tenho imensa gratidão pela oportunidade que o presidente Lula me deu de participar de seu governo. Durante todo o período em que fiquei, nunca transferiu para ninguém as decisões que eram tomadas em meu setor. Foi ele que decidiu que iria liberar os transgênicos. Foi ele que pediu para o ministro da Fazenda (Guido Mantega) conversar com o setor financeiro de que não deveria haver crédito para desmatadores. E é por isso que hoje querem mudar a lei, tornar legal o que é ilegal.
DIA-A-DIA – Como lidar com o consumo da classe média brasileira, que vem crescendo ao longo dos anos, sem que isso cause impacto ambiental?
MARINA – O Brasil ter conseguido diminuir a pobreza e colocado 31 milhões nos últimos anos na classe média é algo que deve ser celebrado. Qualquer povo busca a prosperidade. Mas nós vamos ter de pensar nosso conceito de prosperidade. Nós vamos nos sentir prósperos e felizes com o mesmo padrão de produção e consumo dos norte-americanos, europeus e japoneses? Se for esse o padrão, então nós temos planeta para sustentar isso. Se nós universalizarmos isso para os 7 bilhões de humanos, precisaríamos de cinco planetas Terra. E nós só temos um. Pensar nosso desenvolvimento e nossa qualidade de vida vai significar um esforço de resignificação de como vamos nos sentir prósperos e felizes. Será que ter qualidade de vida é ficar com seu carro o dia todo parado no trânsito ou deve ser investimento de qualidade de transporte público para que as pessoas possam ter mobilidade? Será que sinônimo de riqueza são apenas bens materiais? Nosso desejo em almejar as coisas é infinito, mas os recursos do planeta são finitos. Por que não ter desejos infinitos de bens imateriais? Se eu tenho uma casa digna, um trabalho, alimentação saudável, entretenimento, eu tenho aquilo que é fundamental para desenvolver as minhas potencialidades. E eu tenho que almejar é mais educação, conhecimento, porque nesse quesito nosso desejo pode ser infinitamente ampliado. Nós podemos competir uns com os outros de forma muito saudável. Não podemos querer bens materiais acima da capacidade de suporte do planeta. Não há limites para ser mais sábio, inteligente, generoso. Esse é um momento de questionamento e de tradução da consciência em ações efetivas.  

DIA-A-DIA – Que paralelo a senhora faz da Rio+20 com a Eco-92, realizada há 20 anos, também no Rio de Janeiro?
MARINA – São 20 anos em que a consciência da população brasileira se ampliou em relação ao temas ambientais. O Brasil criou o conceito de socioambientalismo, que hoje é discutido no mundo todo. Isso aconteceu de forma fantástica. Temos de lembrar que há 24 anos o Chico Mendes estava sendo assassinado e nem a mídia brasileira sabia quem ele era. Se não tivesse saído no New York Times, ele teria sido sepultado sem que ninguém prestasse atenção nele. E graças a esforços de diferentes setores, hoje o Brasil é o País que mais ampliou sua consciência. Mas ao mesmo tempo estamos vivendo a ameaça deste grande retrocesso. De uma Rio+20 que pode se transformar em uma Rio-20, que em vez de reavivar a memória dos grandes compromissos assumidos em 1992, pode colocar uma pá de cal neste trabalho. O Brasil poderia agora estar liderando isso, mas infelizmente a decisão do governo brasileiro foi de retirar a discussão do meio ambiente da Rio+20. Vamos discutir desenvolvimento social, economia verde e governança sem discutir meio ambiente, como se não fosse possível integrar essas discussões. 

DIA-A-DIA – É uma forma de tapar o sol com a peneira sobre esse assunto?
MARINA – É tudo tão claro como emergência, como necessidade de reflexão, que não tem fumaça que faça cortina para isso. Os humanos precisam compreender que são parte da natureza. Ficarmos presos a agenda do dinheiro pelo dinheiro, do poder pelo poder, é a perda do lastro social. É o descompromisso com o futuro.

 DIA-A-DIA – Como é lidar com a responsabilidade de ser uma das maiores autoridades do mundo na questão ambiental?
MARINA – Eu aprendi lição muito bonita com o dom Moacyr (Grechi, arcebispo de Porto Velho), que preservo no meu coração. Certa vez, em uma reunião das comunidades de base, com 27 anos, fiz o seguinte comentário para ele, referente a um conflito de terras envolvendo seringueiros e ribeirinhos no seringal Livramento, Catuaba e Bom Futuro (no Acre), quando eu e outra voluntária da CPT (Comissão Pastoral da Terra), fomos levar alimentos para os ribeirinhos, em uma canoa, sem chamar a atenção dos jagunços, perguntei para ele como nos mandou para o olho do furacão, sendo a gente tão inexperiente. E, obviamente, com nossas armadilhas da vaidade, esperando que ele dissesse que a gente era muito corajosa, respondeu: ‘Minha filha, quando a gente não tem a quem enviar, envia qualquer um’. E eu aprendi que qualquer um pode fazer muitas coisas. Aprendi isso com dom Moacyr, Chico Mendes, Lula no início da criação do PT, que a gente tem de ir como qualquer um. E se todos forem como qualquer um, a gente acaba virando todo mundo, fazendo o que é preciso. Se cada um fizer a sua parte, não precisaremos mais de heróis sem ser ouvidos em seu tempo. Chico Mendes foi um herói que não foi ouvido no seu tempo.  

DIA-A-DIA – Valeu a pena a luta pela Presidência da República, pelos quase 20 milhões de votos?
MARINA – Valeu a pena ter colocado, eu e Guilherme Leal (presidente da Natura, que foi candidato a vice-presidente), a bandeira da sustentabilidade como um projeto para o Brasil, que no presente sinaliza aquilo que é o nosso potencial como futuro. E valeu a pena porque há uma correspondência no desejo da sociedade brasileira. Ter quase 20 milhões de votos (19.636.359 votos) com um minuto e vinte segundos de televisão (na propaganda eleitoral gratuita), com um partido pequeno (o PV), mesmo com um tema que as pessoas juravam que não iria falar no coração das pessoas, por ser assunto de ecochato, mostra que vale a pena. Mostra que a alma do brasileiro não é pequena. 

DIA-A-DIA – E seu futuro? Deseja disputar novamente a Presidência?
MARINA – Penso em continuar fazendo o que sempre fiz. Quando terminou a eleição, disse que não ficaria na cadeira cativa de candidata. Saí do PV porque ele foi incoerente com seu legado. Não poderia fazer discurso do protagonismo da sociedade dentro de um partido que não elege seus dirigentes. E saí com sentimento ambíguo de tristeza e gratidão. Tristeza pelos dirigentes não terem sido capazes de adotar prática coerente. E gratidão porque foi o PV que propiciou isso ao Brasil. Mas não quis ficar refém dessa coisa de ser candidata e de que os 20 milhões de votos são meus. Eles não são meus, são dos eleitores. Trato esses votos como um legado e não como um espólio. O espólio pode ser apropriado por poucos, mas o legado por muitos. Sinceramente, não sei se serei candidata a presidente. E espero estar no lugar onde eu possa contribuir mais para essa transformação da sociedade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário